sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

Bola de trapos, edição de 22 de fevereiro de 2019 no Diário do Alentejo

José Saúde
A bola
Num indelével sentimento onde a dócil melancolia esbarra numa mente que usufrui, por enquanto, a possibilidade em recordar imagens de outrora que se multiplicaram em hábitos desportivos de crianças alinhadas com o prazer do jogo, revejo o normal habitat da miudagem e a sua frenética luta em despiques com a célebre bola de trapos. Somos originários desses obsoletos tempos. Recordo, com uma saudade imensa, a algazarra dos rapazes de rua, assim como os saudáveis desafios em terrenos vadios, agora transfigurados em betão armado, e logo à tona da memória aparecem reproduções das manhãs domingueiras que envolviam jogatanas de futebol, sendo as balizas demarcadas com duas pedras num campo substancialmente irregular. Naquele tempo as bolas de borracha eram escassas e por vezes lá aparecia o menino mimado, filho de gentes da alta sociedade, que presunçosamente metia inveja ao resto da moçada com uma bola de borracha amarela, marca pirelle, debaixo do braço. A redondinha era sinónimo de excêntricos prazeres e sobretudo de entrega dos “putos” ao duelo. O menino, que não jogava patavina mas tinha que fazer parte infalível de uma das equipas porque era o dono da bola, cedo se apercebia que a raia miúda não lhe passava a redondinha e toca a interromper o entusiasmante dérbi da pequenada. De rabo alçado lá fugia que nem uma flecha rumo à sua mansão. A ralé, pouco importunada com a leviana atitude do garoto, jogava mãos à bola de trapos e o jogo prosseguia. Aliás, as oportunidades em dar uns chutos numa esfera de borracha eram, nesses tempos, coisa rara. A bola de trapos, feita com uma meia roubada à mãe, afigurava-se como uma preciosidade que a ralé juvenil muito se regozijava. A talho de foice lembro, também, as bexigas de porco recolhidas pela malta em épocas das matanças no matadouro da terra. Tudo isto é conversa do passado, é verdade, mas um passado onde despertaram craques que percorreram enormes percursos futebolísticos quer em termos nacionais, quer internacionais. Hoje, olhamos para a realidade presente e logo damos conta que tudo desliza para o mundo da facilidade. As crianças de agora têm outros mecanismo competitivos, vestem equipamentos de marca, calçam botas de qualidade, as bolas são excecionais, jogam em campos relvados, ou sintéticos, e têm um público, geralmente familiar, a puxar pela equipa. Nós jogávamos em agrestes terreiros infestados com ervas daninhas onde residiam cacos de vidro, sendo que alguns dos nossos companheiros jogavam descalços, os fatos de treino era a roupa domingueira, para quem a tinha, não havia assistência aos jogos e fugíamos das forças da ordem sempre que o policia de giro detetasse as nossas presenças. Bem-haja a conquista da liberdade e o progresso que a Revolução dos Cravos facultou!
Fonte: Facebook de José saúde.

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