sexta-feira, 19 de maio de 2017

A bola de trapos


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José Saúde


Num frenético sentimento nostálgico, recordo a algazarra dos rapazes de rua, revejo os despiques em terrenos vadios, agora transformados em betão armado, lembro delirantes instantes e logo surge, à tona da memória, as manhãs domingueiras que envolviam jogatanas de futebol, sendo a baliza duas pedras. Naquele tempo as bolas de borracha eram, de facto, muito escassas. Às vezes lá aparecia o menino mimado, filho de gentes da alta sociedade, que, presunçosamente, metia inveja ao resto da moçada, com uma bola debaixo do braço. A redondinha era sinónimo de excêntricos prazeres. O menino que não jogava patavina, mas tinha que fazer parte infalível de uma das equipas, porque era o dono da bola, apercebia-se, entretanto, que a gentalha miúda não lhe passava o esférico e toca a interromper o embate. De rabo alçado lá fugia rumo à sua mansão. A ralé, pouco importunada com a leviana atitude do garoto, jogava mãos à bola de trapos e o jogo prosseguia. Aliás, as oportunidades em dar uns chutos numa esfera de borracha eram, basicamente, raras. A bola de trapos, feita com uma meia roubada à mãe, era uma preciosidade que a plebe não dispensava. Evoco, também, as bexigas de porco recolhidas pela malta em épocas das matanças. Tudo isto é conversa do passado, mas um passado onde se cruzaram grandes craques que percorreram enormes percursos desportivos, quer em termos nacionais, quer internacionais. Hoje, olhamos para a realidade presente e tudo desliza para o facilitismo. As crianças de agora têm todo o mecanismo competitivo facilitado, vestem equipamentos de marca, calçam botas distintas, o material das balizas são da melhor qualidade, as bolas excecionais, jogam em campos relvados, ou sintéticos, e têm um público a puxar pela equipa. Nós, antigamente, jogávamos em agrestes terreiros onde residiam ervas daninhas, com a roupa domingueira, alguns descalços, não havia assistência aos dérbies e fugíamos das forças da ordem sempre que o polícia de giro detetasse as nossas presenças. Concluindo: como foi bom a conquista da liberdade, que deu lugar à transformação constatada. 

Fonte:  http://da.ambaal.pt/

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