sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

Bola de trapos, edição no Diário do Alentejo, edição de 22 de dezembro de 2017 Pé descalço

O homem ao longo dos tempos absorveu inestimáveis realidades que o encaminharam para sublimes condescendências. As gerações conheceram benfeitorias que fizeram do ser humano uma personalidade forte, destemida e competente no exercício das funções. O universo desportivo conheceu semelhantes primórdios onde o praticante se viu arreigado a circunstâncias que lhe consolaram a alma. Noutros tempos o dogma constatado no estigmatizado extrato social que a plebe considerava de índole baixo, passava pelo inevitável crivo que grande parte das crianças andavam de pé descalço. A ligeireza da mente afirma que essa imagem fez parte do meu quotidiano enquanto miúdo. Felizmente, nunca passei por tão inusitado desdém. No rigor de um inverno que não dava tréguas, presenciei garotos a quebrar, com os pés defraudados de proteção, o gelo que se acumulava numa lagoa, ou entregarem-se a pequenas jogatanas de futebol com uma bola de trapos num “estádio” impregnado de cardos, ou de fragmentos de vidro que proliferavam por tudo o que era sítio e que resultavam, por norma, em excessivos cortes nas solas dos pés. Essa irrefutável exatidão faz parte de histórias passadas e que paulatinamente se vão diluindo na viagem de um tempo sem tempo. Aliás, no infinito de um horizonte enegrecido, esfumam-se memórias que persistem em não cair no limbo do esquecimento, sendo que trazer-las à ribalta aconselha-se. As situações comoventes que testemunhámos, são agora meras peças de fantasia no teatro dos sonhos de petizes que desfrutam de excelentes condições desportivas. Num rastreio feito a quimeras que já vão longe, ocorre-me citar uma tarde de desporto que ocorreu no campo do Liceu de Beja, meados da década de 1960, onde intervieram alguns estabelecimentos de ensino, sendo que numa prova de atletismo, meio-fundo, o nosso companheiro Cardoso, aluno da Escola Industrial e Comercial de Beja, desafiou a distância e fez o percurso de pé descalço. O Cardoso foi meu condiscípulo na equipa de juvenis do Despertar e uma das vítimas mortais na antiga guerra colonial, no seu caso em Moçambique. Neste caminhar por ínvias veredas, detenho-me perante o atual rosário de modalidades e vejo o quão importante foi o poder democrático que, em 25 Abril de 1974, conquistou o país. O pé descalço é somente uma certeza antiga atirada para o arquivo da miseração, sentindo-se contemporaneamente orgulho em jovens que se divertem a seu belo prazer na infinidade do mundo desportivo. Nada lhes falta. Têm equipamentos, bolas, sapatilhas e botas de marca, campos relvados, outros sintéticos, técnicos abalizados, infraestruturas desportivas condizentes, métodos de treinos competentes, bem como dirigentes e clubes que lhes prestam uma digna atenção. Para trás ficou a época do rotineiro pé descalço.
Fonte: Facebook de Jose Saude

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