sexta-feira, 21 de dezembro de 2018

"O TRILHO"

Em 2012 lancei um livro - "O TRILHO" - onde relato a vivência de uma personagem que nasce em 1950 e morre em 2050. Retrato a virtualidade com o mundo da ficção.
Os nomes constatados na obra são fictícios, mas baseados em realidades conhecidas. O futuro é visto de uma forma virtual e sobretudo vista pela imaginação.
Aqui fica um pequeno texto onde falo sobre Aldeia da Liberdade (Baleizão).

Aldeia de Liberdade
Na velha aldeia de Liberdade, uma contemplativa urbe situada nas proximidades de Bajú, os ianques construíram um cenário de Hollywood para enredos de filmes de ação. A imensidão da planície permite o controlo dos montes e dos vales. O velho “xerife”, armado com duas pistolas, uma em cada coldre, chapéu de abas trabalhadas, colete à prova de bala, botas feitas “à maneira” e calças de ganga apertadas, comanda o grupo “amigo” que tem por missão defender o rancho das “Marianas”. No cume contrário, os inconformados “índios”, homens que nunca aceitaram uma condição submissa, preparam uma ação de ataque. É dia de levar correio aos povos desprotegidos de Vale de Atum. Gente dispersa que anseia por uma notícia. A velha carroça, puxada por três parelhas de imponentes e lustrosos cavalos, faz-se ao caminho com a dolorosa missão de distribuir as missivas sempre desejadas. A “diligência” é vigiada por uma secção do “xerife” do rancho das “Marianas”. No enclave da “tortilha” dá-se o desenlace. Os “índios” atacam e o assalto é consumado. Os “mortos” e “feridos” são “aos montes”. Com a cena já compilada e com os atores e figurantes refeitos do alegado susto, é altura certa para o regresso ao povoado de Liberdade. Agora todos são amigos. Segue-se uma pequena cavaqueira, um eventual reparar de estragos, e o regresso a um salutar convívio comunitário. O dia fora pesaroso. Houve partes do enredo em que as cenas sofreram várias repetições. Nestas coisas, o realizador é um sujeito imperturbável. Um pequeno desalinhamento é sinal que tudo tem de recomeçar. Melhor: voltar ao início. As cenas são para levar à letra. O título do filme terá o nome: “O Assalto no Montado”. É pressuposto que todo o seu enredo seja baseado num conflito tribal. As desavenças medem-se pela força. A guerra impera.
As margens do Grande Rio do Sul, de nome Memorial, são agora o palco para cenários cinematográficos. À beira-rio surgem, ainda, resquícios de um passado literalmente próspero. Os moinhos centenários das margens do rio ostentam a sua impunidade esquecida e são hoje relíquias visíveis ao homem informático. Por ali passaram gentes que, num passado distante, faziam da labuta diária o seu ganha-pão.
O velho moleiro, sabedor das aventuras do tempo, normalmente poeta e revelando uma ancestral sabedoria popular, deixou explícitas marcas de uma existência que ganhou força ao longo de anos a fio. O moinho utilizava a corrente do rio, sendo a água que entrava nos açudes, a força motora que fazia deslizar as mós, uma sobre a outra, para triturar os cereais fazendo a semente em farinha. Ao lado dos moinhos localizava-se a casa do moleiro, sua residência oficial, um pequeno lar onde se desenvolveram casas de famílias e se comeu o pão que o diabo amassou. Efemérides do tempo que jazem simplesmente em distintos livros de um passado já quimérico.
O moleiro era um homem castiço. Brincalhão. Para tudo tinha uma resposta. Transportava os sacos de farinha no seu velho carro puxado por uma mula que ostentava uma idade avançada. Com um barrete preto enfiado na cabeça, manchado de farinha, umas calças de cotim, uma jaqueta sobre os ombros, uma camisa de lã e umas botas tipicamente alentejanas mandadas fazer no sapateiro da aldeia, o velho moleiro assumia-se como um deus da planície. O seu enrugado rosto, já queimado pelas agruras do tempo e a facilidade com que debatia os temas relacionados com o campo, deixavam antever que se estava na presença de um homem que conhecia a preceito as vicissitudes dos enredos da vida. Nos tempos da guerra civil na vizinha Espanha, houve moleiros nas margens do Memorial, especificamente onde o rio faz fronteira, que assumiram papéis determinantes numa ajuda intrínseca aos refugiados e aos contrabandistas. Ensinavam os caminhos mais seguros, o sítio mais certo onde a rapaziada poderia atravessar o rio, escondiam gentes quiçá desorientadas com o espaço e construíam esconderijos para proteger os aventureiros de um eventual encontro com as forças da ordem.
O velho moleiro era um homem maduro e dedicado a prestar préstimos aos necessitados, por vezes fustigado com perguntas das autoridades que tentavam sacar-lhe informações úteis para as forças da ordem que regimentavam o sistema político. Porém, o homem refugiava-se num inquebrável silêncio, invulnerável às armadilhas deitadas ao vento por gentes que tinham como missão utilizá-lo para lhe extrair subsequentes informações que o moleiro convictamente negava.
Com o cigarro ao canto da boca feito com a perícia de um homem do campo e a velha onça de tabaco no bolso da camisa, o astuto moleiro fingia nada entender a uma pergunta mais eficaz do agente. Contornava a resposta com a habilidade de um verdadeiro mestre. Era um homem sábio.
Por outro lado, a velha linha férrea sobre a ponte do rio Memorial ganhou uma nova dinâmica. Por ali passava antigamente a automotora, carros e rebanhos de gados. A sua plena utilidade foi, ao longo dos anos, de uma extrema eficácia. Mais tarde fechou-se à comunidade. A imponência do passado quedou-se ante as modernices dos tempos vindouros. A linha entre Bajú e Salúquia fora desativada. Falou-se na sua reabertura, mas tudo não passou de vãs campanhas publicitárias. Agora reabriu restritamente para o tráfego ferroviário. A sua estrutura fora entretanto reforçada face às exigências que a circulação, intensa, requer. Os velhos pilares, construídos na base do ferro, foram alvo de reparos.
Bajú e Salúquia voltaram a unir-se com um comboio de alta velocidade. A linha da velha ponte, completamente refeita, apresenta-se como uma obra de arte da arquitetura moderna, obra de afamados arquitetos e engenheiros. Passageiros não faltam.
Visitantes ocasionais aproveitam para espraiarem o seu olhar pelas lindas paisagens que a viagem proporciona. As velhas estações e apeadeiros formam uma corrente hoteleira de grande monta de uma família árabe de nome Hammed. Há comboios especiais meramente destinados aos turistas. Param em todas as estações onde são servidos aos visitantes pratos típicos da gastronomia alentejana. Além deste contacto com os produtos da região, existem pequenos espaços comerciais que dispõem de recordações. Tudo está equacionado com a nova avalanche de turistas que diariamente visitam o Alentejo.
As novas produções de filmes trouxeram à urbe de Liberdade outras atividades. Pelas ruas, todas alcatroadas e que convergem com avenidas amplas, passeiam-se atores - caras conhecidas - e uma panóplia de pessoas ligadas às artes cinematográficas.
A taberna de um antigo democrata, bisneto de um velho republicano, conhecida como “O Sonho”, é agora um conhecido café-concerto. No pátio de entrada um homem vestido à pank, cabelos negros, entrelaçados e compridos, roupa totalmente preta, brincos nas orelhas, na língua e no umbigo, botas de couro revestidas de bronze, duas argolas de ouro nos lábios pintados de roxo – uma no superior outra no inferior – e uma voz que se arrasta ao som da música, assume o papel de rececionista, sendo em simultâneo o disco jóquei do famoso Segurança – bar de consumo mínimo e onde proliferam beldades estonteantes que não se escusam a fazer olhinhos aos jovens da terra. Eles, envergando o estatuto de machos latinos e no auge, não se fazem rogados a tantas solicitações. Lá vão conciliando o mundo do trabalho com os seus famosos tempos livres. Preenchem os espaços e dão vaias às ilustres forasteiras. Comenta-se que já houve casamentos felizes. Outros, nem tanto assim. Destroçaram-se perante pequeno desentendimento. Nada de anormal. A sociedade pactua com situações deste calibre.
No adro da igreja, o antigo cemitério, mudado, entretanto, para Liberdade de Baixo, deu lugar a um amplo espaço. Um complexo de piscinas olímpicas, algumas fechadas face à sua utilização no inverno, assume-se, agora, como um local privilegiado a visitar. Ali observam-se atores de cinema, gente de capital e, obviamente, os consagrados habitantes da aldeia, uma aldeia que sempre recusou a sua passagem a vila. Laços de história que os libertinos fazem questão em enaltecer.
Lembram, amiudadamente, a sua velha heroína Bárbara Avante - “uma mulher que morreu às mãos dos soldados fascistas”, garante a gente mais velha – um símbolo que continua a afirmar-se como a alma viva dos aldeões de Liberdade. Uma camponesa fatidicamente atraiçoada quando reclama por um melhor salário diário na época das ceifas. Estava-se nos anos quentes de 1950. Após a “Revolução de Abril” e o ênfase natural pela regalia conquistada, o Partido do Povo eternizou-a como sua militante. Fez dela uma heroína.
Era o tempo das necessidades. Das carências. Tempo em que o povo comentava: “Em casa, a família cantava para não dar a entender à vizinhança que a fome predominava sobre a mesa vazia”.

José Teodósio, um velho camarada do partido do povo, é agora o alcaide-mor da urbe. Fez sempre parte dos elencos escolhidos em sufrágio, porém nunca assumira o papel de líder. Chegou a hora do velho libertino, 102 anos, chegar ao topo dos eleitos e ditar a linha dos seus pensamentos. Foi sempre um homem bom. Adora a terra que o viu nascer. Um libertino de gema. Esteve uns anos ausente, todavia Liberdade fora a terra inquestionavelmente sonhada. Deixou a fábrica onde trabalhava, lá para as bandas de Lusitânia, juntou os trapinhos e acolheu-se ao mundo dos seus sonhos.
Teodósio, um homem de convicções, reclamou a sua condição política e deu sempre voz às teses de um partido que tem como um dos seus princípios básicos a defesa do proletariado. Com uma estrutura física bastante fraca, uma barba branca que mantém há mais de 60 anos, o novo alcaide-mor pretende dar a Liberdade mais movimento a uma aldeia que se dimensionou seguramente no tempo de forma coordenada. Reconhece os caminhos percorridos, a evolução da terra natal, e assume-se como um anfitrião de primeira água quando toca a receber os ilustres forasteiros. A sua consciência permite-lhe destrinçar o trigo do joio, sendo os ianques primorosamente recebidos. Chegou-se ao tempo de esquecer velhas quezílias e enaltecer as realidades deparadas. Os velhos tempos do capitalismo renderam-se a uma democracia que consiste na sua organização mundial.
No núcleo de amigos, José Teodósio é reconhecido pelo dom da sua voz quando em causa está o cante alentejano. Deus contemplou-o com essa virtude. Entoa primorosamente o conteúdo das cantigas, conhece ao pormenor os seus versos e o tom emanado pelas suas cordas vocais permite-lhe, sempre que necessário, fazer o chamado alto (voz que sobressai no grupo de cantadores e que visa quebrar a pausa de um verso). O “Zé”, como habitualmente é tratado na aldeia, não vira a cara à luta e, não obstante o avançar da idade, é um homem feliz, tal como sempre o fora.
À parte estas novas vivências, os habitantes de Liberdade deslocam-se diariamente para a vizinha Bajú, cidade que congrega maioritariamente a mão de obra da região. Outros ficam-se pela aldeia assegurando as empresas, algumas cinematográficas, que ali se instalaram em força.
Liberdade é, agora, uma aldeia manifestamente solidária.

Fonte: Facebook de Jose Saude

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