Em 2012 lancei um livro - "O TRILHO" - onde relato a vivência de uma
personagem que nasce em 1950 e morre em 2050. Retrato a virtualidade
com o mundo da ficção.
Os nomes constatados na obra são fictícios,
mas baseados em realidades conhecidas. O futuro é visto de uma forma
virtual e sobretudo vista pela imaginação.
Aqui fica um pequeno texto onde falo sobre Aldeia da Liberdade (Baleizão).
Aldeia de Liberdade
Na velha aldeia de Liberdade, uma contemplativa urbe situada nas
proximidades de Bajú, os ianques construíram um cenário de Hollywood
para enredos de filmes de ação. A imensidão da planície permite o
controlo dos montes e dos vales. O velho “xerife”, armado com duas
pistolas, uma em cada coldre, chapéu de abas trabalhadas, colete à prova
de bala, botas feitas “à maneira” e calças de ganga apertadas, comanda o
grupo “amigo” que tem por missão defender o rancho das “Marianas”. No
cume contrário, os inconformados “índios”, homens que nunca aceitaram
uma condição submissa, preparam uma ação de ataque. É dia de levar
correio aos povos desprotegidos de Vale de Atum. Gente dispersa que
anseia por uma notícia. A velha carroça, puxada por três parelhas de
imponentes e lustrosos cavalos, faz-se ao caminho com a dolorosa missão
de distribuir as missivas sempre desejadas. A “diligência” é vigiada por
uma secção do “xerife” do rancho das “Marianas”. No enclave da
“tortilha” dá-se o desenlace. Os “índios” atacam e o assalto é
consumado. Os “mortos” e “feridos” são “aos montes”. Com a cena já
compilada e com os atores e figurantes refeitos do alegado susto, é
altura certa para o regresso ao povoado de Liberdade. Agora todos são
amigos. Segue-se uma pequena cavaqueira, um eventual reparar de
estragos, e o regresso a um salutar convívio comunitário. O dia fora
pesaroso. Houve partes do enredo em que as cenas sofreram várias
repetições. Nestas coisas, o realizador é um sujeito imperturbável. Um
pequeno desalinhamento é sinal que tudo tem de recomeçar. Melhor: voltar
ao início. As cenas são para levar à letra. O título do filme terá o
nome: “O Assalto no Montado”. É pressuposto que todo o seu enredo seja
baseado num conflito tribal. As desavenças medem-se pela força. A guerra
impera.
As margens do Grande Rio do Sul, de nome Memorial, são
agora o palco para cenários cinematográficos. À beira-rio surgem, ainda,
resquícios de um passado literalmente próspero. Os moinhos centenários
das margens do rio ostentam a sua impunidade esquecida e são hoje
relíquias visíveis ao homem informático. Por ali passaram gentes que,
num passado distante, faziam da labuta diária o seu ganha-pão.
O
velho moleiro, sabedor das aventuras do tempo, normalmente poeta e
revelando uma ancestral sabedoria popular, deixou explícitas marcas de
uma existência que ganhou força ao longo de anos a fio. O moinho
utilizava a corrente do rio, sendo a água que entrava nos açudes, a
força motora que fazia deslizar as mós, uma sobre a outra, para triturar
os cereais fazendo a semente em farinha. Ao lado dos moinhos
localizava-se a casa do moleiro, sua residência oficial, um pequeno lar
onde se desenvolveram casas de famílias e se comeu o pão que o diabo
amassou. Efemérides do tempo que jazem simplesmente em distintos livros
de um passado já quimérico.
O moleiro era um homem castiço.
Brincalhão. Para tudo tinha uma resposta. Transportava os sacos de
farinha no seu velho carro puxado por uma mula que ostentava uma idade
avançada. Com um barrete preto enfiado na cabeça, manchado de farinha,
umas calças de cotim, uma jaqueta sobre os ombros, uma camisa de lã e
umas botas tipicamente alentejanas mandadas fazer no sapateiro da
aldeia, o velho moleiro assumia-se como um deus da planície. O seu
enrugado rosto, já queimado pelas agruras do tempo e a facilidade com
que debatia os temas relacionados com o campo, deixavam antever que se
estava na presença de um homem que conhecia a preceito as vicissitudes
dos enredos da vida. Nos tempos da guerra civil na vizinha Espanha,
houve moleiros nas margens do Memorial, especificamente onde o rio faz
fronteira, que assumiram papéis determinantes numa ajuda intrínseca aos
refugiados e aos contrabandistas. Ensinavam os caminhos mais seguros, o
sítio mais certo onde a rapaziada poderia atravessar o rio, escondiam
gentes quiçá desorientadas com o espaço e construíam esconderijos para
proteger os aventureiros de um eventual encontro com as forças da ordem.
O velho moleiro era um homem maduro e dedicado a prestar préstimos
aos necessitados, por vezes fustigado com perguntas das autoridades que
tentavam sacar-lhe informações úteis para as forças da ordem que
regimentavam o sistema político. Porém, o homem refugiava-se num
inquebrável silêncio, invulnerável às armadilhas deitadas ao vento por
gentes que tinham como missão utilizá-lo para lhe extrair subsequentes
informações que o moleiro convictamente negava.
Com o cigarro ao
canto da boca feito com a perícia de um homem do campo e a velha onça de
tabaco no bolso da camisa, o astuto moleiro fingia nada entender a uma
pergunta mais eficaz do agente. Contornava a resposta com a habilidade
de um verdadeiro mestre. Era um homem sábio.
Por outro lado, a
velha linha férrea sobre a ponte do rio Memorial ganhou uma nova
dinâmica. Por ali passava antigamente a automotora, carros e rebanhos de
gados. A sua plena utilidade foi, ao longo dos anos, de uma extrema
eficácia. Mais tarde fechou-se à comunidade. A imponência do passado
quedou-se ante as modernices dos tempos vindouros. A linha entre Bajú e
Salúquia fora desativada. Falou-se na sua reabertura, mas tudo não
passou de vãs campanhas publicitárias. Agora reabriu restritamente para o
tráfego ferroviário. A sua estrutura fora entretanto reforçada face às
exigências que a circulação, intensa, requer. Os velhos pilares,
construídos na base do ferro, foram alvo de reparos.
Bajú e
Salúquia voltaram a unir-se com um comboio de alta velocidade. A linha
da velha ponte, completamente refeita, apresenta-se como uma obra de
arte da arquitetura moderna, obra de afamados arquitetos e engenheiros.
Passageiros não faltam.
Visitantes ocasionais aproveitam para
espraiarem o seu olhar pelas lindas paisagens que a viagem proporciona.
As velhas estações e apeadeiros formam uma corrente hoteleira de grande
monta de uma família árabe de nome Hammed. Há comboios especiais
meramente destinados aos turistas. Param em todas as estações onde são
servidos aos visitantes pratos típicos da gastronomia alentejana. Além
deste contacto com os produtos da região, existem pequenos espaços
comerciais que dispõem de recordações. Tudo está equacionado com a nova
avalanche de turistas que diariamente visitam o Alentejo.
As novas
produções de filmes trouxeram à urbe de Liberdade outras atividades.
Pelas ruas, todas alcatroadas e que convergem com avenidas amplas,
passeiam-se atores - caras conhecidas - e uma panóplia de pessoas
ligadas às artes cinematográficas.
A taberna de um antigo
democrata, bisneto de um velho republicano, conhecida como “O Sonho”, é
agora um conhecido café-concerto. No pátio de entrada um homem vestido à
pank, cabelos negros, entrelaçados e compridos, roupa totalmente preta,
brincos nas orelhas, na língua e no umbigo, botas de couro revestidas
de bronze, duas argolas de ouro nos lábios pintados de roxo – uma no
superior outra no inferior – e uma voz que se arrasta ao som da música,
assume o papel de rececionista, sendo em simultâneo o disco jóquei do
famoso Segurança – bar de consumo mínimo e onde proliferam beldades
estonteantes que não se escusam a fazer olhinhos aos jovens da terra.
Eles, envergando o estatuto de machos latinos e no auge, não se fazem
rogados a tantas solicitações. Lá vão conciliando o mundo do trabalho
com os seus famosos tempos livres. Preenchem os espaços e dão vaias às
ilustres forasteiras. Comenta-se que já houve casamentos felizes.
Outros, nem tanto assim. Destroçaram-se perante pequeno desentendimento.
Nada de anormal. A sociedade pactua com situações deste calibre.
No adro da igreja, o antigo cemitério, mudado, entretanto, para
Liberdade de Baixo, deu lugar a um amplo espaço. Um complexo de piscinas
olímpicas, algumas fechadas face à sua utilização no inverno,
assume-se, agora, como um local privilegiado a visitar. Ali observam-se
atores de cinema, gente de capital e, obviamente, os consagrados
habitantes da aldeia, uma aldeia que sempre recusou a sua passagem a
vila. Laços de história que os libertinos fazem questão em enaltecer.
Lembram, amiudadamente, a sua velha heroína Bárbara Avante - “uma
mulher que morreu às mãos dos soldados fascistas”, garante a gente mais
velha – um símbolo que continua a afirmar-se como a alma viva dos
aldeões de Liberdade. Uma camponesa fatidicamente atraiçoada quando
reclama por um melhor salário diário na época das ceifas. Estava-se nos
anos quentes de 1950. Após a “Revolução de Abril” e o ênfase natural
pela regalia conquistada, o Partido do Povo eternizou-a como sua
militante. Fez dela uma heroína.
Era o tempo das necessidades. Das
carências. Tempo em que o povo comentava: “Em casa, a família cantava
para não dar a entender à vizinhança que a fome predominava sobre a mesa
vazia”.
José Teodósio, um velho camarada do partido do povo, é
agora o alcaide-mor da urbe. Fez sempre parte dos elencos escolhidos em
sufrágio, porém nunca assumira o papel de líder. Chegou a hora do velho
libertino, 102 anos, chegar ao topo dos eleitos e ditar a linha dos seus
pensamentos. Foi sempre um homem bom. Adora a terra que o viu nascer.
Um libertino de gema. Esteve uns anos ausente, todavia Liberdade fora a
terra inquestionavelmente sonhada. Deixou a fábrica onde trabalhava, lá
para as bandas de Lusitânia, juntou os trapinhos e acolheu-se ao mundo
dos seus sonhos.
Teodósio, um homem de convicções, reclamou a sua
condição política e deu sempre voz às teses de um partido que tem como
um dos seus princípios básicos a defesa do proletariado. Com uma
estrutura física bastante fraca, uma barba branca que mantém há mais de
60 anos, o novo alcaide-mor pretende dar a Liberdade mais movimento a
uma aldeia que se dimensionou seguramente no tempo de forma coordenada.
Reconhece os caminhos percorridos, a evolução da terra natal, e
assume-se como um anfitrião de primeira água quando toca a receber os
ilustres forasteiros. A sua consciência permite-lhe destrinçar o trigo
do joio, sendo os ianques primorosamente recebidos. Chegou-se ao tempo
de esquecer velhas quezílias e enaltecer as realidades deparadas. Os
velhos tempos do capitalismo renderam-se a uma democracia que consiste
na sua organização mundial.
No núcleo de amigos, José Teodósio é
reconhecido pelo dom da sua voz quando em causa está o cante alentejano.
Deus contemplou-o com essa virtude. Entoa primorosamente o conteúdo das
cantigas, conhece ao pormenor os seus versos e o tom emanado pelas suas
cordas vocais permite-lhe, sempre que necessário, fazer o chamado alto
(voz que sobressai no grupo de cantadores e que visa quebrar a pausa de
um verso). O “Zé”, como habitualmente é tratado na aldeia, não vira a
cara à luta e, não obstante o avançar da idade, é um homem feliz, tal
como sempre o fora.
À parte estas novas vivências, os habitantes de
Liberdade deslocam-se diariamente para a vizinha Bajú, cidade que
congrega maioritariamente a mão de obra da região. Outros ficam-se pela
aldeia assegurando as empresas, algumas cinematográficas, que ali se
instalaram em força.
Liberdade é, agora, uma aldeia manifestamente solidária.
Fonte: Facebook de Jose Saude
Sem comentários:
Enviar um comentário