Pé descalço
O homem, ao longo dos tempos, absorveu inestimáveis convicções que o
encaminharam para sublimes considerações. As gerações conheceram
benfeitorias que fizeram do ser humano uma personalidade forte,
destemida e competente no exercício das suas genuínas funcionalidades. O
universo desportivo conheceu primórdios onde o praticante se viu
arreigado a circunstâncias que lhe consolaram a alma. Noutros tempos o
dogma constatado no estigmatizado extrato social que a plebe considerava
de índole baixo, passava pelo inevitável crivo que grande parte das
crianças andavam de pé descalço. Aliás, a ligeireza da mente assegura
que essa imagem fez parte do meu quotidiano enquanto miúdo, mas que
felizmente nunca passei por tão inusitado desdém. No rigor do inverno
presenciei garotos a quebrar com os pés, despojados de proteção, o gelo
que se acumulava numa lagoa, ou entregarem-se a pequenas jogatanas com
uma bola de trapos num “estádio” impregnado de cardos, assim como de
fragmentos de vidro onde os cortes resultavam em excessivos danos
físicos. Essa irrefutável exatidão faz parte de histórias passadas e que
paulatinamente se foram diluindo numa viagem pelas aureolas dos tempos.
De outro modo, afianço que no infinito de um horizonte enegrecido
concentram-se memórias que persistiram em não cair no limbo do
esquecimento, sendo que trazê-las à ribalta é aceitável. As situações
comoventes que testemunhámos, são agora meras peças de fantasia no
teatro dos sonhos de petizes que desfrutam de excelentes
infraestruturas. Num rastreio feito a quimeras que já vão longe,
ocorre-me citar uma tarde desportiva que ocorreu no campo do Liceu de
Beja, meados da década de 1960, onde intervieram alguns estabelecimentos
de ensino, sendo que numa prova de atletismo, meio-fundo, o nosso
companheiro Cardoso, aluno da Escola Industrial e Comercial de Beja,
desafiou a distância e fez o percurso de pé descalço. O Cardoso foi meu
condiscípulo na equipa de juvenis do Despertar e uma das vítimas mortais
na antiga guerra colonial, no seu caso em Moçambique. Neste caminhar
por ínvias veredas, detenho-me perante o atual rosário de modalidades e
vejo o quão importante fora o poder democrático que a 25 Abril de 1974
libertou o país das indúcias que atormentava um fenómeno que se
pretendia evolutivo. O pé descalço é, tão-somente, uma certeza antiga
atirada para o arquivo da miseração, sentindo-se hoje orgulho em jovens
que se divertem a seu belo prazer na infinidade de um mundo que lhes
proporciona inigualáveis prazeres. Nada lhes falta. Têm equipamentos,
bolas, sapatilhas e botas de marca, campos relvados, outros sintéticos,
técnicos abalizados, infraestruturas desportivas condizentes, métodos de
treino competentes, bem como dirigentes e clubes que lhes prestam uatenção. Para trás ficaram as épocas de um rotineiro pé descalço.
Fonte: Facebook de Jose saude.
Fonte: Facebook de Jose saude.
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