JOSÉ SAÚDE
O menino da bola
Num frenético sentimento nostálgico, recordo a algazarra dos rapazes de rua, revejo os despiques com uma bola em terrenos vadios, agora transformados em betão armado, lembro delirantes instantes e logo surgem à tona da memória as manhãs domingueiras que envolviam grandes jogatanas de futebol, sendo a baliza duas pedras, um “território” que muitos desprezavam, mas onde normalmente aparecia um rapaz com jeito para defender os remates mais certeiros dos intervenientes no prélio e lá se assumia como guarda-redes. Naquele tempo as bolas de borracha eram, de facto, escassas. Às vezes lá aparecia o menino mimado, filho de gentes da alta sociedade que, presunçosamente, metia inveja ao resto da moçada com uma bola amarela de marca ‘Pirelle’ debaixo do braço. A redondinha era sinónimo de excêntricos prazeres. O menino que não jogava patavina, mas tinha que fazer parte infalível de uma das equipas, porque era o dono da bola, apercebia-se, entretanto, que a gentalha miúda não lhe passava o esférico, pois a criança não piscava patavina daquilo… logo a rapaziada, já amadurecida com as negligências da vida, levava o petiz a interromper o embate e lá marchava de rabo alçado rumo à sua mansão com a respetiva redondinha não fosse a “maralha” acabar com o brinquedo do garoto. A ralé, já conhecedora dessas tropelias, pouco se importunava com a leviana atitude do garoto, jogava mãos à bola de trapos e o jogo prosseguia. Aliás, as oportunidades em dar uns chutos numa esfera de borracha, naqueles tempos, eram, basicamente, raras. A bola de trapos, feita com uma meia roubada à mãe, era uma preciosidade que a criançada não dispensava. Evoco, também, as bexigas de porco recolhidas pela malta em épocas das matanças, principalmente quando os moços eram oriundos de uma aldeia e assistiam ao vivo ao esquartejar das carcaças dos animais. Tudo isto é conversa do passado, assumo, mas um passado onde se cruzaram grandes craques que percorreram enormes percursos desportivos, quer em termos nacionais, quer internacionais. Hoje, olhamos para a realidade presente e tudo desliza para o facilitismo. As crianças de agora têm todo o mecanismo competitivo facilitado, vestem equipamentos de marca, calçam botas distintas, o material das balizas é da melhor qualidade, as bolas excecionais, jogam em campos relvados, ou sintéticos, e têm um público a puxar pela equipa. Nós, antigamente, jogávamos em agrestes terreiros onde residiam as ervas daninhas e os vidros, mas com a roupa domingueira, alguns até descalços, não havia assistência aos dérbis e fugíamos das forças da ordem sempre que o polícia de giro detetasse as nossas presenças. Como foi bom a conquista da liberdade, que deu lugar à transformação agora constatada.
Fonte: Facebook de Jose Saude
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