José Saúde
Pé descalço
O homem ao longo dos tempos absorveu inestimáveis realidades que o encaminharam para sublimes condescendências. As gerações de outrora conheceram benfeitorias que fizeram do ser humano uma personalidade forte, destemida e competente no exercício das suas funções. O universo desportivo conheceu semelhantes primórdios onde o praticante se viu arreigado a circunstâncias que lhe consolaram a alma. Noutros tempos, o dogma constatado no estigmatizado extrato social que o povo considerava de índole baixo, passava pelo inevitável crivo que grande parte das crianças andavam de pé descalço. A ligeireza da mente afirma que essa imagem fez parte do meu quotidiano, enquanto miúdo, e que ainda hoje está bem patente na minha já cansada memória. Felizmente, nunca passei por tão inusitada rotina. No rigor de um inverno, que não dava tréguas, presenciei garotos a quebrar o gelo que se acumulava numa lagoa, ou a entregarem-se a pequenas jogatanas de futebol, com uma bola de trapos, num imaginativo “estádio” impregnado de cardos, ou de fragmentos de vidro que proliferavam por tudo o que era sítio e que resultavam em excessivos cortes nos seus pés literalmente despidos de proteção. Essa irrefutável exatidão faz parte de histórias tradicionalistas e que se foram diluindo na viagem de um tempo agora sem tempo. No infinito de um horizonte enegrecido, esfumam-se recordações que persistem em não cair no limbo do esquecimento, sendo certo que as conduzir para a ribalta se aconselha. As situações comoventes que testemunhámos são agora meras peças de fantasia num anfiteatro onde os artistas conhecem palcos substancialmente antagónicos. Num resguardado cantinho da minha sagacidade, revejo uma tarde de quarta-feira em que a antiga Mocidade Portuguesa promoveu um encontro de atletismo no campo do Liceu de Beja e que reuniu pessoal da Escola Industrial e Comercial de Beja e claro do Liceu. Nessas épocas as atividades desportivas entre estes dois estabelecimentos de ensino trouxeram à estampa excelentes momentos de convívios. Recordo de uma seleção feita pelo professor Rony, indiano, que contemplou o nosso saudoso amigo Cardoso, um rapaz que morreu em Moçambique, na guerra colonial, como concorrente da Escola na especialidade de fundo. Deu-se o tiro de partida e o Cardoso apresentou-se à saída com os pés descalços. É óbvio que o Cardoso fez todo o percurso sem sapatilhas e não se interessou com a sua classificação final. A sua opção foi participar no evento e nada mais. O pé descalço era, afinal, uma normalidade para crianças, alguns já adolescentes, com a qual convivíamos diariamente. No jogo da bola entre miúdos não existia também essa dicotomia. Era comum depararmo-nos com moços que a primeira coisa que faziam quando chegavam a um improvisado recinto do jogo era sacar dos sapatos, tirar as meias e toca a jogar descalços. Realidades doutras eras e logicamente impensáveis no tempo presente!
Fonte: Facebook de Jose Saude.
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