Livro: “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”
Conterrâneos e amigos
Sabeis, por certo, que somos genuínos seres humanos cujo desaparecimento com o evoluir das décadas tudo vai, de mansinho, transformando. A trindade do tempo encarregar-se-á em dar novas formas a conteúdos, particularmente em corpos, os nossos, que se vão “ausentando” deste planeta terrestre. Sim, porque ninguém é imortal.
Mas, para além da situação emocional que gere a humanidade, existem espaços físicos que na nossa aldeia trouxeram novos efeitos e grandes encantos. Sabe-se, com fidelidade, que na “Natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, afirmava Antoine-Laurent de Lavoisie. Neste contexto acrescento: Somos, no fundo, prisioneiros de uma sociedade onde ressaltam inesquecíveis memórias que o progredir das eras jamais esquecerá.
Conheci, na década de 1950, as valas que se abriam nas ruas aldeãs, sendo esse serviço feito com base na força de braços humanos, homens que ao longo do dia rasgavam o chão com picaretas (não havia as máquinas que hoje facilitam o serviço), dos enormes tubos redondos de cimento, do seu profícuo alinhamento, o tapar os adensados regos, tendo como finalidade levar a água a casas de pessoas que até então recorriam ao poço do lobo, ou à popular bica da aldeia, utilizando as “enfusas” que mui presunçosamente “viajavam” à cabeça das mulheres e sempre inertes na sua eternizada missão. Aliás, imagens que nunca esquecerei, principalmente daqueles contadores que contabilizavam a água consumida e colocados nas faceiras das residências dos clientes, normalmente localizados junto à porta de entrada das residências.
Tudo são, atualmente, relíquias de uma aldeia, a nossa, que soube desafiar novéis métodos, assim como os seus sistemas permanentemente evolutivos, desbravando espaços físicos, arrumando as suas ruelas, dantes de terra batida (algumas), construindo novos lares, ou remodelando as suas antigas habitações e tudo aquilo que o mais incauto cidadão do mundo contemporâneo possa por ora “ver para crer”, como dizia São Tomé.
Caros conterrâneos e amigos, trago-vos um texto elucidativo das carências de outrora do nosso povo, tema este inserido na minha última obra “Aldeia Nova de São Bento – Memórias, Estórias e Gentes”, Edições Colibri, e que explica o quão necessário foi levar o bem precioso (água) aos lares dos nossos antepassados, particularmente lá para as bandas do Monte Poço e Atafona.
O Dr. Póvoas explica, em síntese, a sua preocupação relativa ao assunto, não esquecendo, por outro lado, que ele foi um homem perseguido pela PIDE e que morreu com raiva, transmitida quando tratava de um cão raivoso. Vamos, pois, relembrar um dos seus escritos em “DEMOCRACIA DO SUL”, Nº 4663 - Évora, 29 de Maio de 1933.
Abraços de amizade,
Zé Saúde
Dr. Póvoas
Na mente de uma criança existem recordações que a lonjura do tempo nunca esquecerá. Recordo, perfeitamente, em ouvir, principalmente pelos meus pais, falar de um médico em Aldeia Nova que terá morrido com raiva na sequência de uma operação que fez a um cão.
Esse médico chamava-se Francisco Durão Póvoas e que sempre mostrou uma grande empatia com o povo. Homem liberal de ideias que lhe valeu uma perseguição devastadora por parte da antiga polícia do Estado Novo que dava pelo nome de PIDE e que fez dele um prisioneiro político.
A foto foi recolhida nas instalações da Sociedade 5 de Outubro e que exponho, com a devida vénia, para além de um colossal agradecimento, a um artigo de opinião do doutor Póvoas subscreveu sobre a nossa terra nos anos 30, do século passado.
1933 - Artigo do Dr. Francisco Durão Póvoas sobre as condições higiénicas em Aldeia Nova de São Bento
“DEMOCRACIA DO SUL”, Nº 4663 - Évora, 29 de Maio de 1933.
"Aldeia Nova de S. Bento é uma freguesia do concelho de Serpa e a mais populosa aldeia do país.
Essencialmente rural a sua população recruta-se adentro dos trabalhadores do campo, aqueles que fabricam e produzem toda a riqueza local.
É esta população laboriosa acumulada em bairros impróprios, mal alojada, falha de uma assistência cultural que melhor a dirigisse. Defendendo-a da doença, debate-se com um certo número de deficiências que seriam remediáveis até certo ponto, com um poucochinho de boa vontade.
O Monte-poço e a Atafona, constituem um bairro da aldeia, o mais populoso certamente.
Pois não tem uma rua calcetada nem uma valeta ao menos que drene a água que as chuvas acumulam em enormes poças para depois apodrecer lentamente ao sol.
Os mosquitos pululam e com eles o paludismo que apresenta aqui toda a gravidade de um problema que urge solucionar para bem de todos, mesmo para os que não vivem no Monte-poço ou na Atafona.
Um problema… mas aqui há muitos que necessitam de solução imediata.
Enumeremos alguns, os mais urgentes: Águas, esgotos, vigilância das habitações, proibição de estrumeiras nas ruas, etc.
Não se pense, contudo, que a solução prática desses problemas seja difícil ou onerosa.
As coisas resolvem-se com simplicidade, prática e higienicamente.
Assim, vejamos.
O abastecimento de água é feito por poços onde todos levam o seu caldeirão, geralmente sujo, pois em casa arrumam-no em qualquer canto, na cavalariça mesmo; poços para onde vão todas as imundícies, para onde cospem os garotos, onde se lançam as sobras dos animais que beberam e de alguém que, de passagem, matou a sede.
Solução: Uma placa de cimento armado com um postigo para limpeza e uma bomba para tirar água.
Acho uma solução prática, pouco dispendiosa e – o que mais interessa – higiénica.
***
Esgotos não conheço por aqui. E a não ser um cano que vai carriando toda a imundície da parte nobre da aldeia, mesmo para debaixo do nariz dos que moram na Afafona, não conheço mais nada.
De modo que, no Verão, quem desejar conhecer todo o matriz pestilencial e infecto não tem mais do que aproximar-se da boca criminosa desse esgoto que vai infectando, minando a saúde dum bairro laborioso mas indefeso.
Solução: Levar esse cano até fora da aldeia.
Não será barato, convenho. Mas é moral, é decente e é humano.
***
Em matéria de construção temos umas habitações feitas de taipa batida, pavimentos de terra solta e coberturas de telha designadas por “salto de rato”,
É bom dizer-se que a única abertura por entra a luz, o ar, os donos da casa e o burro – pois não há casal que não tenha um burro - é a porta da entrada, na maioria das casas pobres.
Não se fazem janelas e o pior quarto da casa é geralmente o escolhido para repousar.
O que estas construções valem, como meio de defesa contra o rigor das estações não vale a pena expor, facilmente se percebe.
Mas o que os seus pavimentos valem como esponja que embebe toda a humidade no Inverno, como pó que entra em todas as gargantas no Verão, isso é outra coisa, pois compreende-se com facilidade o seu papel como mantenedor e produtor dum certo número de contágios.
Junte-se a isto o pocilgo do porco junto à casa e a estrumeira dentro dela, muitas vezes, e ter-se-á o quadro completo.
Solução: Medidas que obriguem a uma vistoria de saúde antes de uma casa nova ser habitada; proibição de pavimentos inconvenientes e de casas sem uma janela ao menos.
***
O calcetamento das ruas, a drenagem dos lagos que se encontram aqui e ali, a proibição de estrumeiras junta às habitações, são outras tantas medidas que se impõem.
Para terminar aponto ainda a necessidade de proibir que se façam para rua e em pleno dia, despejos de águas sujas. E por vezes altamente sujas!
Cumpre a todos, na medida do possível, obstar a que muitos desses factos se produzam, factos como os que apontamos e que tão baixo colocam aqueles que os consentem. Só por educação, sem violências nem multas, tudo se conseguiria. Bastaria que a escola tivesse a possibilidade de não deixar na rua milhares e milhares de crianças sem instrução, para que, pelo conhecimento, isto, esta vergonha, desaparecesse.
Cumpre-me registar o agrado a boa impressão que me deixaram os rapazes e as raparigas que frequentavam as escolas de Aldeia Nova.
O seu ar comedido, a sua correcção, o bom aspecto dos fatinhos pobres mas asseados, marcam bem o esforço, a boa vontade de quem as ensina.
Se em Portugal seguíssemos o exemplo daqueles que aqui bem perto de nós, tanto fazem pela instrução popular, em breve veríamos apagarem-se extinguirem-se estes focos de infecção próprios de um povo atrasado, dum povo que nem a sua saúde sabe defender, naquilo que essa defesa tem de mais simples e rudimentar."
Fonte: Facebook de JOse Saude.
Sem comentários:
Enviar um comentário