sexta-feira, 24 de maio de 2019

Bola de trapos, edição de 24 de maio de 2019 no Diário do Alentejo

José Saúde
O futebol de rua
Numa meticulosa jornada aos misteriosos conteúdos desportivos, aportamos no admirável futebol de rua, viajamos por tempos áureos e revemos imagens literalmente inesquecíveis. Da velha artéria de aldeia, vila ou cidade, ao bairro mais árido deste infinito planeta, passando pelas favelas ou guetos de vivência extrema onde as carências ditam tácitas ordens gregárias, para além das típicas savanas africanas, o futebol criou raízes profundas numa sociedade que se moldou a uma modalidade onde o ocasional mendicante se transformou num homem reconhecido e senhor de uma conduta social que o eleva a um supremo deus implacavelmente adorado. Na alta competição sempre proliferaram atletas oriundos do trivial futebol de rua. Homens que se imiscuíram depois num grupo distinto de uma sociedade onde os efémeros sonhos se tornaram realidade. Lembro, enquanto criança, me deparar com jovens que cedo manifestavam talento para acarinharem a preceito a mítica bola, não obstante a sua matéria prima se rotulasse como de trapos. O requinte do pormenor inserido na figura franzina do fedelho, suscitava interesse naquele velho olheiro que passava horas a fio a deliciar-se com os feitos da miudagem. Na verdade ninguém lhes ensinara a forma de jogar, logo a apetência do garoto era nata. O momento do passe, do remate, do golo ou da aprimorada finta, exalava o cheiro de um fino bálsamo e suscitava cavaqueira entre grupos que viviam entusiasticamente o esplêndido fenómeno futebolístico. Mais tarde alguns assumiram o estatuto de genuínos craques. Levaram, e levam, multidões ao êxtase e são merecedores de efetivos aplausos. Uns construíram uma vida de sucesso, outros, porém, caíram em armadilhadas nunca acauteladas. Perderam-se no tempo e nas ratoeiras de uma faustosa vida onde acabaram como vítimas da desgraça. Do sucesso ao insucesso vai um pequeno passo. Mas o verídico craque traça planos vindouros, arruma convincentemente o seu ego e não se deixa arrastar pela vaidade que o êxtase do momento convictamente lhe proporciona. A solução plausível para desbravar airosamente este mundo de ilusões está, a meu ver, na génese do próprio jogador. Mas, existem alguns que constroem castelos de areia que resvalam para a impiedosa fantasia que atira os seus parcos haveres para o banco do jardim. Conheço o futebol já lá vão algumas décadas e percebo a razão que levou alguns a singraram na vida. Todavia, existem outros que se deixaram embrulhar numa teia implacável e que os atirou para o anonimato. Envolveram-se em universos esquisitos onde a calamidade dita ordem. Foram apanhados pelas amarras do consumo. Ganharam e gastaram. Pouco ou nada sobrou. Neste cenário de falsidades em que o desporto é fértil, fica a convicção que no futebol de rua nasceram artistas que nalguns dos casos o cosmos da bola nefastamente consumiu.
Fonte. Facebook de Jose saude.

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