Uma noite gélida, com uma daquelas friezas que até congelava o tutano, mas o adepto, homem que por nada deste mundo abandona o seu clube, empoleirou-se ao muro do estádio, querendo assistir a mais um jogo.
Texto e Foto Firmino Paixão
O futebol continua sem a presença de público, não obstante, já em plena pandemia, terem sido feitos ensaios que suscitaram dúvidas e geraram controvérsias. Voltou-se, então, ao cenário das bancadas ao abandono, num silêncio que permite escutar o piar da passarada, quando não a troca de palavras entre os protagonistas do jogo. Falta a moldura humana. Faltam os estímulos, a pressão positiva sobre a equipa da casa, os assobios aos adversários, os insultos, os impropérios dirigidos às equipas de arbitragem. Ai como as suas mãezinhas têm permanecido num estado de absoluta pureza!
Mas o público tem saudade dos jogos de bola e o futebol tem falta dessa presença que, afinal, o completa. Sem adeptos, o futebol não é o mesmo, ninguém vibra com os lances, não se festeja o golo, nem se discute a justiça das decisões. Um bom jogo de futebol, em qualquer tarde de domingo, era um antídoto do mais eficaz e profilático para ao adepto ‘stressado’ que descarregava a testosterona em redor do campo. Esquecia os problemas do seu quotidiano, a dureza do trabalho e a magreza do salário. O homem libertava-se, enquanto contestava, com ou sem razão, as incidências dentro do retângulo de jogo.
Não importava quem tinha razão, era preciso barafustar. O adepto era, simultaneamente, treinador, era juiz, era de tudo um pouco e, às vezes, também aquilo que as mulheres não os deixavam ser na sua própria casa. O futebol era o tónico, era a emancipação, a explosão de sentimentos oprimidos, a afirmação do ego e da masculinidade. Já no tempo da ditadura, os governantes prescreviam ao povo insubmisso, uma boa dose de futebol, um calmante fascizante que o anestesiava. Os que iam nisso, claro.
Ah pois, o homem fez-se para guerrear! Bom, mas esta é a visão do adepto mais radical, é claro que uma árvore não faz a floresta. Mas este adepto, numa noite em que o mercúrio do termómetro oscilava entre o zero e o menos um, culpa da depressão Filomena, claro, a culpa é sempre das mulheres, pendurado na cercania do campo de futebol, queria lá saber do frio. Queria ver a sua equipa jogar, libertar as amarras deste tempo que nos confina, nos oprime, nos amedronta, queria “matar a saudade da felicidade”, como muito bem cantou a inigualável Mara Abrantes, naquele magnífico poema, pleno de romantismo, “Os Amantes” (Lourenço Cantineto e Sidney da Conceição, 1979).
Sim existe uma relação de enorme romantismo entre o futebol e o público, os adeptos e os seus clubes são insuspeitos amantes em tudo o que, literalmente, se pode inferir da expressão. “Para matar a saudade/ da felicidade/ dos instantes/ que juntos passamos” poderia ter trauteado o solitário adepto empoleirado. Mas, como cada um expressa a saudade à sua maneira, cada um é o fiel da sua própria balança, o bom do homem só esperou que o árbitro apitasse, para dar início e partida e, ainda a bola não teria rolado todo o seu perímetro, já ele berrava lá de cima do muro “o árbitro está comprado”. É isso, aquela ilusão de estar ali só “pode ser saudade, só pode ser saudade”, como no poema de Jorge Fernando. A saudade, esse sentimento que se diz ser bem português e que em boa verdade não tem tradução noutros idiomas, não é mais do que a recordação de algo que já vivemos e que temos uma vontade imensa de repetir.
Saudade é um sentimento afetuoso suscitado pela distância, pela ausência de alguém que amamos ou de algo que muito gostamos. Chegados aqui, recordemos que - saudade - foi eleita, pelo favoritismo dos portugueses, como a palavra do ano de 2020, num tempo em que a concorrência era enorme, face ao abundante e repetitivo uso de vocábulos como covid-19, pandemia, quarentena, confinado, atípico, e por aí adiante. Mas saudade é saudade e não resistimos a recordar aquele belo poema, em crioulo cabo-verdiano (de Amândio Cabral e Louis Morais), cantado, imortalizado, pela enormíssima diva Cesária Évora “Sodade, Sodade/ Sodade dessa minha terra São Nicolau”.
Pois é, a saudade que os adeptos têm do futebol e a falta que o povo faz ao jogo da bola! Mas foi a pandemia que os separou, e o seu regresso aos campos de futebol não se adivinha para breve. Tem sido mais fácil suspender o futebol do que, alguma vez, pensar em repor nos estádios aquela magnífica moldura humana de outros tempos. Aqueles a quem a adição ao jogo da bola fertiliza a criatividade, levam bancos, banquetas, escadas e escadotes e empoleiram-se, para não perdem uma pitada do que se passa lá dentro.
Mais criativos foram, numa destas manhãs, os adeptos de um clube que treparam às árvores exteriores do recinto e ali ficaram, pendurados nos galhos, como cegonhas em ninhos, incansáveis nos cânticos e nos estímulos ao seu emblema. Uma nova realidade, algo que julgaríamos impensável, num tempo também ele diferente, povoado de incertezas, recheado de surpresas e pautado pelos medos. Sim, medos!
Começámos por dizer que #vamos ficar todos bem. Sim, claro, aqueles que ainda não morreram… A ausência de público no futebol criou, também, a falsa ideia de que faltando a pressão positiva dos adeptos da casa, isso resultaria num maior número de vitórias dos clubes visitados. O jornalista Carlos Torres, editor executivo da revista “Sábado” (nº 872, 14/1) quis saber se realmente os adeptos ajudam a ganhar jogos e, através de uma esclarecedora infografia, concluiu que sim, que em Alemanha, Espanha e Inglaterra isso é verdade mas, em Portugal, nem por isso, a falta de público não influenciou a média de resultados na principal Liga Portuguesa.
Contudo, porque se diz, amiudadamente, que o futebol é o “desporto rei”, ou que é o “ópio do povo”, tratemos lá, responsavelmente, de ajudar a debelar a pandemia, com o incomensurável esforço e a louvável dedicação dos profissionais de saúde e, os que ficarem efetivamente bem, sobrevivendo, regressarão um dia às bancadas dos estádios de futebol para poderem gritar, alto e bom som, olhos nos olhos, que “o árbitro está comprado”
Fonte: https://diariodoalentejo.pt
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