sexta-feira, 19 de junho de 2020

Bola de trapos na edição de 19/06/2020 no Diário do Alentejo

José Saúde
Pé descalço
O homem, ao longo dos tempos, absorveu inestimáveis convicções que o encaminharam para sublimes considerações. As gerações conheceram benfeitorias que fizeram do ser humano uma personalidade forte, destemida e competente no exercício das suas genuínas funcionalidades. O universo desportivo conheceu primórdios onde o praticante se viu arreigado a circunstâncias que lhe consolaram a alma. Noutros tempos o dogma constatado no estigmatizado extrato social que a plebe considerava de índole baixo, passava pelo inevitável crivo que grande parte das crianças andavam de pé descalço. Aliás, a ligeireza da mente assegura que essa imagem fez parte do meu quotidiano enquanto miúdo, mas que felizmente nunca passei por tão inusitado desdém. No rigor do inverno presenciei garotos a quebrar com os pés, despojados de proteção, o gelo que se acumulava numa lagoa, ou entregarem-se a pequenas jogatanas com uma bola de trapos num “estádio” impregnado de cardos, assim como de fragmentos de vidro onde os cortes resultavam em excessivos danos físicos. Essa irrefutável exatidão faz parte de histórias passadas e que paulatinamente se foram diluindo numa viagem pelas aureolas dos tempos. De outro modo, afianço que no infinito de um horizonte enegrecido concentram-se memórias que persistiram em não cair no limbo do esquecimento, sendo que trazê-las à ribalta é aceitável. As situações comoventes que testemunhámos, são agora meras peças de fantasia no teatro dos sonhos de petizes que desfrutam de excelentes infraestruturas. Num rastreio feito a quimeras que já vão longe, ocorre-me citar uma tarde desportiva que ocorreu no campo do Liceu de Beja, meados da década de 1960, onde intervieram alguns estabelecimentos de ensino, sendo que numa prova de atletismo, meio-fundo, o nosso companheiro Cardoso, aluno da Escola Industrial e Comercial de Beja, desafiou a distância e fez o percurso de pé descalço. O Cardoso foi meu condiscípulo na equipa de juvenis do Despertar e uma das vítimas mortais na antiga guerra colonial, no seu caso em Moçambique. Neste caminhar por ínvias veredas, detenho-me perante o atual rosário de modalidades e vejo o quão importante fora o poder democrático que a 25 Abril de 1974 libertou o país das indúcias que atormentava um fenómeno que se pretendia evolutivo. O pé descalço é, tão-somente, uma certeza antiga atirada para o arquivo da miseração, sentindo-se hoje orgulho em jovens que se divertem a seu belo prazer na infinidade de um mundo que lhes proporciona inigualáveis prazeres. Nada lhes falta. Têm equipamentos, bolas, sapatilhas e botas de marca, campos relvados, outros sintéticos, técnicos abalizados, infraestruturas desportivas condizentes, métodos de treino competentes, bem como dirigentes e clubes que lhes prestam uatenção. Para trás ficaram as épocas de um rotineiro pé descalço.
Fonte: Facebook de Jose saude.

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