sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Um trail, duas serras e um herói


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Uma aventura que começou em Linhares da Beira, numa sexta-feira às 18 horas e terminou no mesmo local, 180 quilómetros e quase 44 horas depois, vencendo enormes desafios orográficos das serras da Estrela e do Açor.

Texto e foto Firmino Paixão


O desafio foi a segunda edição do fabuloso Estrela Açor Trail Ultra Endurance,  organizado pelo Mundo da Corrida. As serras da Estrela e do Açor, enquanto parte da cadeia montanhosa da cordilheira central do sistema Montejunto-Estrela, com a maior altitude de Portugal continental, dispensarão outras considerações, mas o herói, esse sim, chama-se Miguel Brites, nascido em Estremoz há 45 anos, residente em Beja há uma década, mecânico auto de profissão, que se aventurou num desafio aos seus limites físicos e psicológicos, numa prova de 180 quilómetros, em trilhos cuja beleza se confunde com a dificuldade de os superar.
O atleta partiu na tarde de sexta-feira, em Linhares da Beira, às 18 horas, e voltou ao ponto de partida, a vila medieval do século XII, 43 horas e 47 minutos depois, ou seja, na manhã do domingo seguinte. Muitas horas, muitas histórias, muito tormento, talvez algum sofrimento e, no final, a felicidade pela realização de tão exigente missão. “Quero mais, não vou ficar por aqui, no próximo ano será melhor”, disse-nos Miguel Brites quando o conhecemos e o felicitámos pelo 11.º lugar na geral absoluta, entre 43 atletas à partida. “O meu percurso no trail é recente, pratico há quatro anos, joguei hóquei em patins, depois comecei a praticar atletismo, num como noutro caso, no Clube de Futebol Estremoz, e agora optei pelo trail”, referiu Miguel Brites, revelando também que “este ano já disputei, entre outros, o Ultra Trail Terras de Sicó, o Trail de Portalegre, o Ultra Trail Serra da Freita e agora o Estrela Açor, todos com mais de 100 quilómetros, mas acho que abusei um bocadinho, o normal são dois ou três anuais e eu excedi-me um pouco”.
A sua preparação é orientada por um ultra maratonista amigo, o João Oliveira (Chaves), e o Estrela-Açor foi antecedido de treinos diários de cerca de 30 quilómetros de corrida, quatro a cinco horas por dia: “Saía da oficina às seis e meia e chegava a casa à meia-noite”. Quem corre por gosto não cansa, por isso Miguel Brites considera que um trail de 180 quilómetros “é uma grande aventura, um teste à nossa capacidade de resistência”, mas sente-se realizado com esse sentimento de superação das dificuldades. “Entramos lá com uma mentalidade muito forte, ia com uma força psicológica enorme e uma tão grande vontade de chegar ao fim, que me custou menos do que uma prova de 100 quilómetros”. O atleta diz mesmo que 80 por cento do apelo à resistência é psicológico, os restantes 20 por cento devem-se a uma boa preparação física, por isso, nas 43 horas e 47 minutos que gastou para cumprir o trajeto foi invadido por muitos pensamentos. “Em nenhum momento pensei em desistir, a minha determinação era para chegar ao fim. Fiz a prova na companhia de uma pessoa muito experiente que eu não via há 25 anos e que encontrei, por acaso, nesta prova, ele predispôs-se a ajudar-me e então juntámo-nos e fomos falando sempre durante os 180 quilómetros. Daí, se calhar, nunca me ter vindo à ideia desistir, isso estava fora do meu pensamento, porque corrermos sozinhos no meio de tantas montanhas potencia o fracasso, leva-nos sempre a pensar em casa, na família, em tudo o que possamos imaginar e, às vezes, convida-nos a renunciar”.
Foram quase dois dias em prova, correu, caminhou e, seguramente, descansou algum tempo. “Há sítios por onde não se consegue correr, tem que se ir caminhando, mas durante a prova descansei apenas 30 minutos, foi esse o tempo que dormi lá no alto da serra, a organização tinha uma tenda, dormitámos 30 minutos, pedimos às pessoas que lá estavam que nos acordassem e arrancámos outra vez, porque tudo o que excede os 15 ou 30 minutos de pausa, depois o corpo já não consegue responder”, relatou o atleta estremocense, que nem apreciou a paisagem serrana. “Desligo-me do que me envolve, concentro-me de tal maneira numa prova que não reparo no que existe em meu redor”, confessou. E no final veio a compensação, o 11.º lugar absoluto e o 1.º no seu escalão, mas “nunca tinha feito uma prova com esta dureza e quando se acaba sente-se uma felicidade enorme, isso, só por si, já é um prémio. Pensamos que nunca mais ali voltamos, mas mais tarde o pensamento já está outra vez na próxima edição e em melhorar o resultado anterior”.
No horizonte está a participação no PT 281 Ultramaratona, uma prova de 281 quilómetros na serra da Estrela, e depois melhorar a classificação no Estrela-Açor. Até lá, mantendo um cuidado regime alimentar: “Evito gorduras, não bebo álcool, de resto como de tudo”. E, provavelmente, representando um clube, em vez de correr como individual. “Ainda não recebi qualquer proposta objetiva, fala--se vagamente, mas nunca houve nada de concreto para representar um clube”, referiu ainda Miguel Brites, o herói de um trail entre duas serras.

Fonte:  http://da.ambaal.pt/

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