As
ruas ainda eram em terra batida. A aldeia era de gente pobre. Ao fim
do dia juntávamo-nos todos no Largo da Feira. Jogávamos à bola.
Quatro pedras eram os postes das balizas. O resto era suor e lágrimas
para conseguir o melhor remate ou a melhor defesa. O resto era pó ou
lama. O resto era amizade. E foi assim que me tornei adepto do
Sporting. Adorava o Damas. Colecionava os cromos do Jordão, do
Manuel Fernandes, do Litos e do António Oliveira. Não sonhava ser
como eles. Eram uns heróis. Estavam nas estrelas, fora do meu
alcance. Sonhava, sim, em ir ver um jogo de futebol num estádio.
Daqueles grandes com muita gente. Era esse o meu sonho, mas… Lisboa
era demasiado longe, para um miúdo de uma família pobre.
A
vida foi melhorando. Chegou o alcatrão. O campo da feira
transformou-se num estaleiro. Deixámos de jogar lá à bola. Comecei
a ir ao Campo da Baiôa, ver o meu Alvorada. Gritava. Pulava. Fazia
sol ou chuva, eu estava sempre lá. Ao domingo. Os mais velhos bebiam
cerveja e deitavam as cascas de amendoim para o chão. Os pequenos
rádios colados ao ouvido. E os golos, os golos. Aquela felicidade.
Aquele prazer. Os heróis saiam do campo esgotados. Beijavam a
camisola. Aplaudíamos. Não existiam claques. Existiam pessoas que
gostavam de futebol. Eu era um deles.
O
Alvorada acabou. Deixei de ir ao Campo da Baiôa. Com o tempo fui
desligando. Mas o Alvorada e o Sporting ficaram sempre no meu
coração. Hoje, o futebol é uma mega empresa gerida por
negociantes. Não se rege por valores humanos mas por objetivos
estranhos. Mesmo assim não consigo deixar de roer as unhas ou gritar
com um golo verde e branco. Fico triste com a derrota, alegre com a
vitória. Como se isso fosse importante para a minha vida. Comi muito
pó a rematar para uma baliza imaginada, com o Manuel Fernandes na
minha cabeça. Isso ficou. Fui feliz e sonhei.
Depois…
já eu percorria as portas, os corredores e bancadas do Estádio José
Alvalade, vestido de azul ferrete, quando o meu filho Dinis
nasceu, o tempo encarregou-se de o fazer Sportinguista, e quando fez
três anos o Tio Luís comprou-lhe um equipamento a rigor. Ele gostava de o
vestir e gritar “Sportem”. Pensei, mais um para sofrer.
O
futebol mudou de genes. Agora é lucro. É milhões. É offshores.
É
violência. Sabemos todos que é tudo isso. Mas também é prazer.
Muitas vezes viciante. E não vem mal nenhum ao mundo gostar de ver
22 jogadores ao pontapé a uma bola. Com cada perna paga a peso de
ouro, só se pode exigir espetáculo.
O
meu Alvorada regressou. Faz parte do futebol. O pobre. Aquele que
sobrevive com o patrocínio do benfeitor ou com o subsídio do
município. Apesar de
tudo, os adeptos conseguem encontrar na rivalidade um prazer
viciante.
Homens
correm atrás de uma bola. Nas laterais do campo, pais e namoradas
dos mais jovens sonham em silêncio com um CR7. Os mais novos ainda
aprendem a “ir ao homem”, “se passa a bola, não passa o
jogador”, a ser “o maior”. O público chama nomes ao fiscal de
linha. Ofendem os adversários. Adam à porrada ser for necessário.
Os treinadores gritam. Eles querem ganhar. Hoje não jogas, ficas a
aquecer o banco. O outro joga mais tempo, é afilhado do treinador.
Podemos
formar craques. Mas será muito mais importante formar seres humanos
de excelência. Mesmo que depois joguem à bola.
Tudo
isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é… futebol.
Hoje,
nem tristeza nem alegria. Falta a camaradagem do balneário. Falta o
cheiro a suor, falta tudo!
Esperamos,
todos juntos, que esta pandemia se vá. E venha o nosso FUTEBOL.
Jorge Martins Cecilia
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