domingo, 29 de março de 2020

Hoje, escrevo eu...


As ruas ainda eram em terra batida. A aldeia era de gente pobre. Ao fim do dia juntávamo-nos todos no Largo da Feira. Jogávamos à bola. Quatro pedras eram os postes das balizas. O resto era suor e lágrimas para conseguir o melhor remate ou a melhor defesa. O resto era pó ou lama. O resto era amizade. E foi assim que me tornei adepto do Sporting. Adorava o Damas. Colecionava os cromos do Jordão, do Manuel Fernandes, do Litos e do António Oliveira. Não sonhava ser como eles. Eram uns heróis. Estavam nas estrelas, fora do meu alcance. Sonhava, sim, em ir ver um jogo de futebol num estádio. Daqueles grandes com muita gente. Era esse o meu sonho, mas… Lisboa era demasiado longe, para um miúdo de uma família pobre.

A vida foi melhorando. Chegou o alcatrão. O campo da feira transformou-se num estaleiro. Deixámos de jogar lá à bola. Comecei a ir ao Campo da Baiôa, ver o meu Alvorada. Gritava. Pulava. Fazia sol ou chuva, eu estava sempre lá. Ao domingo. Os mais velhos bebiam cerveja e deitavam as cascas de amendoim para o chão. Os pequenos rádios colados ao ouvido. E os golos, os golos. Aquela felicidade. Aquele prazer. Os heróis saiam do campo esgotados. Beijavam a camisola. Aplaudíamos. Não existiam claques. Existiam pessoas que gostavam de futebol. Eu era um deles.

O Alvorada acabou. Deixei de ir ao Campo da Baiôa. Com o tempo fui desligando. Mas o Alvorada e o Sporting ficaram sempre no meu coração. Hoje, o futebol é uma mega empresa gerida por negociantes. Não se rege por valores humanos mas por objetivos estranhos. Mesmo assim não consigo deixar de roer as unhas ou gritar com um golo verde e branco. Fico triste com a derrota, alegre com a vitória. Como se isso fosse importante para a minha vida. Comi muito pó a rematar para uma baliza imaginada, com o Manuel Fernandes na minha cabeça. Isso ficou. Fui feliz e sonhei.

Depois… já eu percorria as portas, os corredores e bancadas do Estádio José Alvalade, vestido de azul ferrete, quando o meu filho Dinis nasceu, o tempo encarregou-se de o fazer Sportinguista, e quando fez três anos o Tio Luís comprou-lhe um equipamento a rigor. Ele gostava de o vestir e gritar “Sportem”. Pensei, mais um para sofrer.

O futebol mudou de genes. Agora é lucro. É milhões. É offshores. É violência. Sabemos todos que é tudo isso. Mas também é prazer. Muitas vezes viciante. E não vem mal nenhum ao mundo gostar de ver 22 jogadores ao pontapé a uma bola. Com cada perna paga a peso de ouro, só se pode exigir espetáculo.
O meu Alvorada regressou. Faz parte do futebol. O pobre. Aquele que sobrevive com o patrocínio do benfeitor ou com o subsídio do município. Apesar de tudo, os adeptos conseguem encontrar na rivalidade um prazer viciante.

Homens correm atrás de uma bola. Nas laterais do campo, pais e namoradas dos mais jovens sonham em silêncio com um CR7. Os mais novos ainda aprendem a “ir ao homem”, “se passa a bola, não passa o jogador”, a ser “o maior”. O público chama nomes ao fiscal de linha. Ofendem os adversários. Adam à porrada ser for necessário. Os treinadores gritam. Eles querem ganhar. Hoje não jogas, ficas a aquecer o banco. O outro joga mais tempo, é afilhado do treinador.

Podemos formar craques. Mas será muito mais importante formar seres humanos de excelência. Mesmo que depois joguem à bola.

Tudo isto existe, tudo isto é triste, tudo isto é… futebol.

Hoje, nem tristeza nem alegria. Falta a camaradagem do balneário. Falta o cheiro a suor, falta tudo!

Esperamos, todos juntos, que esta pandemia se vá. E venha o nosso FUTEBOL.

Jorge Martins Cecilia

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