São recordações de um tempo que não sabemos se, e quando, voltará. Vivências e rotinas de miúdos que perderam a liberdade, sentimento trocado pelo medo de um inimigo que lhes alterou os comportamentos, lhes fragilizou a motivação e diminuiu os seus hábitos de vida saudável.
Texto Firmino Paixão
O Miguel, miúdo loiro, caracóis desalinhados, tem na memória a frescura do dia em que soprou as velas do 10º aniversário. Mora ali para a banda oeste da cidade, naqueles prédios altos de cujos andares superiores, em dias soalheiros, desfruta desse momento magnífico em que o sol se deita sobre o horizonte. Um dos andares superiores é a morada de família, de onde ele também avista o arvoredo que circunda os campos de futebol do complexo desportivo.
Todos os dias, ao final da tarde, assegura, com prontidão, a execução dos compromissos académicos. Sabe o Miguel que esses são prioritários e essenciais para que, mais adiante, usufrua dos momentos de lazer, em que os progenitores lhe assinam o livre-trânsito para fazer aquilo de que mais gosta: jogar futebol. Na hora certa, junta-se a outros amigos, vizinhos que com ele partilham o gosto pelo jogo da bola e juntos, numa espécie de boleia a pé, descem a rua que desagua nas imediações do sintético, onde se apronta mais um treino da sua jovem equipa num dos clubes da cidade. Pelo caminho as conversas convergem nas estratégias para o jogo do fim de semana e nas dúvidas quando às escolhas do “míster” para uma provável titularidade na equipa principal. “Havemos de jogar todos” – consensualiza um dos garotos, aliviando a pressão dos que ainda interiorizavam essa dúvida.
No outro lado da cidade, Diogo está impaciente, “em pulgas”, para sermos mais precisos, à espera que os pais, ou os avós, o levem ao dojo onde, semanalmente pratica judo. Enfiado no quimono branco, apertado, com o preceito que só ele exige, pelo cinturão amarelo, a sua mais recente conquista na modalidade, fica irrequieto à medida que vê os ponteiros do relógio galgarem em direção à hora do apronto. Quer ser dos primeiros a pisar o tatami, antes de o mestre chegar e de trocarem a respeitosa vénia oriental, típica das artes marciais. Antes, existe um momento de lazer, um espaço de livre socialização, em que os putos se conhecem melhor e que acaba por fortalecer o espírito de grupo. Iniciado o treino, reina a disciplina, para um primeiro momento de aquecimento com as ‘tachi-waza’ (projeções), dentro de um silêncio apenas quebrado pelo ruído de silhuetas brancas a tombarem no tapete.
Não muito longe, naquele embaraço de ruas dos bairros mais antigos da cidade, o Santiago prepara a logística para mais um treino. Lubrifica as rodas dos patins, faz resplandecer o ‘stick’, reúne as luvas e restantes acessórios indispensáveis a uma prática segura da modalidade que elegeu como sua favorita. Há um brilhozinho nos seus olhos, Talvez a saudade de lhe faltar aquele que era um dos seus mais incondicionais adeptos, o seu maior fã, a sua maior inspiração. Mas lá vai, puxando o trólei da logística, a caminho do pavilhão. No domingo, a equipa tem jogo e a tática que o ‘míster’ idealizar terá que ser bem interiorizada.
Quase terminado o treino já pululam ao redor das quatro linhas outros putos ansiosos por baterem a bola. O Pedro, de olhos com um brilho cativante e um sorriso largo, quase não contém o ímpeto de invadir já o piso brilhante e colorido, traçado por linhas largas, adaptadas às exigências da disciplina que ali vai desenhar-se. Camisolas laranja, largas e cavadas, sobrepostas aos calções, deixam ver os ombros de criança que ainda terão que comer muitas açordas, para ganharem massa muscular. Mas a vontade é enorme, a alegria superior e o sentimento de liberdade incomensurável.
O basquetebol é um desporto que exige um bom porte atlético, mas isso fica para depois, agora é fruir esses momentos únicos de convívio a propósito de uma modalidade desportiva que potencia o desenvolvimento em toda a sua plenitude. Não é um desporto fácil, mas é atrativo, empolgante, diríamos, e os miúdos galvanizam-se quando atiram as bolas à tabela e conseguem a sua introdução no cesto.
A cidade, infelizmente, ainda não possui um espaço amplo, moderno e multidisciplinar, possui alguns com razoável qualidade, onde o problema é quási sempre a disponibilidade. Num outro pavilhão juntam-se miúdos e miúdas, jovens promissores andebolistas. A Soraia, uma das alunas da Academia, aprende já as técnicas básicas e as regras da modalidade em que, no futuro, poderá ser exímia praticante
No domingo seguinte, virão os jogos oficiais, no futebol ou nas modalidades de pavilhão, os torneios de natação, as provas de atletismo, os combates mais a sério, no judo, no karaté, no taekwondo, os desafios com putos de outras terras distantes. Juntar-se-ão as tertúlias de apoio, de incentivo, as famílias que em redor dos palcos rejubilam com o orgulho nos seus heróis. A miudagem exulta com os golos, com as vitórias. Sorriem, festejam, gritam, abraçam-se, sem medos nem fantasmas.
Abraçavam-se! Sim, isso era dantes… Os medos de hoje, a gestão de uma pandemia, a ameaça do coronavírus, inesperado e traiçoeiro inimigo, cortaram os sonhos e a liberdade a todos estes miúdos, ao Miguel, ao Diogo, ao Santiago, ao Pedro, à Soraia. E agora? Quantos miúdos abandonarão a prática desportiva? Quantos, e há quanto tempo, não têm hábitos de vida saudável? Quantos projetos desfeitos? Quando vier a retoma, que problemas comportamentais os acompanham, após um período, tão intenso e longo, de entretenimento digital? Sem socialização, sem afetos entre si, sem a alegria dos golos, a emoção dos lances, o convívio que os faz crescer, as aprendizagens que os tornam melhores. Existirá vacina que promova a retoma da saúde física e mental, que atenue ou cure os danos na autoestima com que estas crianças, os putos da minha cidade, sairão desta crise epidemiológica? Vamos ver…
Fonte: https://diariodoalentejo.pt
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